sexta-feira, 8 de junho de 2007

CABEÇA DURA

Carlos Savasini

Foi o primeiro pensamento que passou em minha mente: que merda eu fui fazer.

– Vai ser só uma picadinha – disse a enfermeira.

Acenderam o holofote na minha cara, puxaram o canto da boca, anestesia e logo começaram a costurar os cortes dos lábios. Testei todos os dentes, todos estavam lá. Braços e pernas mexiam, sorte, só o joelho direito doía. Feito o cordão de fio cirúrgico nos lábios, mão no rosto e sangue: quem mandou ter cabeça dura ? Só depois soube que o pára-brisa do carro trincou e que o capô amassou no joelho. Cacos começando a tomar seu lugar.

– Alguém empurra essa maca! – enfermeira mandona.

No corredor alguns colegas de trabalho, a maca oscilando feito carrinho de mercado trombando com outros cheios de iogurte, bolachas, defumados ou qualquer outro artigo, menos gente. Gemidos e gente chegando a todo o momento. Entra um baleado.

– Agora fudeu! – pensei – Vão esquecer-me aqui no corredor!

Olharam-me, sorriram, tentaram acalmar-me. Todos sabiam do ocorrido, embora ainda não o tivesse contado sequer uma vez. Fora cagada, é certo, junto com meu peso e a falta de reação na hora, só podia dar no que deu.

Virei na maca até o limite da dor, o joelho não permitia mais. Queria logo a esposa ao meu lado, proteção. A memória custou a lembrar do telefone dela, o cérebro desligou, sei lá, coisas que nem Freud explica. Foi mais de hora de vácuo na lembrança. Foi a segunda vez, a primeira num tombo de bicicleta, sem freio. Acordei embaixo do treiller, entre a bicicleta e o engate. Tive sorte : só um arranhão no pé. Neste dia também: joelho inchado, ferimentos nas mãos e na testa, boca costurada e uma deusa para me cuidar.

– Como foi que isto aconteceu? – perguntou a esposa, já do meu lado.

– Voltava do almoço e fui cumprimentar o pessoal do carro.

– E foi para o meio da rua?

– Fui.

– E por que não saiu da frente?

– E deu tempo?

Silêncio.

– Aposto que você estava falando de poesia!

– [Tsik] Estava.

– E agora vou ter que cuidar de você.

– Sabia que eu te amo?

– Não muda de assunto.

– Falta muito?

– Muito?

– Para irmos embora?

– Falta a tomografia.

– Doutor, doutor: libera-me logo, estou bem.

Só depois de algumas horas de maca, quinze dias de cicatrização e um mês de perna manca é que, de fato, fui ficar bem.

(07/06/2007)

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